GRAMADO: RETRATO DE UMA PERPLEXIDADE

por Giba Assis Brasil
junho/setembro de 1991

I

Re-trato pode ser uma representação através da imagem, mas também um novo tratamento, ou um novo acordo. Quem vê o retrato pronto (revelado e fixado) é sempre um outro: basta o retratado tentar se reconhecer na sua própria imagem para confirmar a indeterminação original. Simplesmente porque o retrato é sempre um instante congelado e passado. O cinema, na tentativa de criar a ilusão do movimento e da simultaneidade, apenas aumentou a quantidade de retratos, sem alterar a sua essência. Desconfiemos, pois, da objetividade dos retratistas.

II

O Festival de Gramado continua sendo o mais fiel retrato do cinema brasileiro. Em todos os sentidos: grandezas e baixarias, impasses e criatividade, variedade e repetição. E 1991 (como 1990) não seria diferente só porque um grupo de provectos neoliberais levados ao poder pelo voto e por alguns milhões de dólares andaram espalhando por aí que cultura é apenas uma questão de mercado e só vale a pena se der lucro. Aliás, pra quem não lembra: lucro é logro em latim. Já cinema vem do grego: significa movimento.

III

Dados indiscutíveis: (1) Gramado acontece todos os anos; (2) há algum tempo é voz corrente que o cinema brasileiro está em crise; (3) o, digamos assim, Governo Collor acabou de vez com o falido modelo Embrafilme de produção/distribuição do cinema brasileiro e não criou ou parece pretender criar nenhum outro modelo para substituí-lo; (4) nas CNTP, um longa metragem leva em média um ano para ser filmado, montado e finalizado; (5) no cinema brasileiro hoje, este período raramente é inferior a 2 anos.

Hipóteses prováveis: (a) frente à crise, talvez se prefiram boas idéias a bons filmes, e retratos Polaroid a belos mas demorados efeitos de laboratório; (b) o curta-metragem talvez possa responder melhor a uma certa necessidade de imediatismo, de transformar o retrato em espelho; (c) o público de Gramado talvez veja o cinema brasileiro como o astrônomo que examina a explosão de uma estrela distante - o retrato de algo que não mais existe -, e eu acredito que o júri tome as suas decisões sem parar para calcular a velocidade da luz.

Conclusão possível (e forçada, porque era aonde eu queria chegar desde o início): existe uma boa chance de que o filme consagrado como melhor curta em Gramado represente, de alguma forma, um “sentimento de mundo” presente entre os cineastas, o público (o país?) naquele ano, naquele momento. Mais até que a qualidade intrínseca, importaria nos curtas de Gramado a capacidade de retratar seus espectadores.

Claro que, para examinar essa tese, teríamos muitas vezes que abstrair o tema dos filmes, o assunto dos roteiros, a motivação dos autores. O que interessa é a forma como cada filme bate na platéia, no momento específico do Festival. Um novo tratamento: se Gramado tem sido o espaço para se constatar todo ano que a renovação do cinema brasileiro ou virá do curta ou não virá, talvez seja também porque, hoje, o longa raramente se faz espelho.

IV

Um novo acordo: talvez não tenha sido sempre assim. É bastante provável que muito curta tenha sido premiado simplesmente porque era o melhor daquele ano. E é difícil discutir as premiações dos primeiros dez ou doze festivais, quando os curtas concorriam junto com os médias, eram quase que só documentários e ainda não tinham conquistado, no âmbito do festival, o espaço que têm hoje - até porque, naquela época, os longas feitos no país ainda existiam concretamente dentro do tal mercado.

A tese central deste artigo, do meu ponto de vista, só faz pleno sentido a partir de 1986, e é nestes termos que eu me proponho a defendê-la. Isto significa tirar de pauta filmes com significado histórico preciso, como ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DE GUARARAPES (Sérgio Peo/RJ/1979), FÊNIX (Sílvio Da-rin/RJ/1981) e MATO ELES? (Sérgio Bianchi/PR/ 1983), bem como filmes significativos por si só, tais como P.S.TE AMO (Sérgio Rezende/RJ/1978), O SOM (Arthur Omar/RJ/ 1985) e A LONGA VIAGEM (Chico Botelho/SP/1985).

Mas, por mais que me esforçasse, eu não saberia explicar por que, em abril de 1984, na mesma semana em que um milhão de pessoas se reuniram em praça pública no Rio de Janeiro para pedir Diretas Já, o júri de Gramado premiou IDOS COM O VENTO (Isay Weinfeld e Márcio Kogan/SP), coletânea de três ou quatro piadas sobre a vida da escritora norte americana Margaret Mitchell. Lembrando Geraldo Vandré, 1968: felizmente, a vida não se resume aos festivais.

V

O Festival de Gramado de 1986 foi realizado em abril, pouco mais de um mês após a decretação do Plano Cruzado. Preços congelados, fiscais do Sarney à solta, euforia consumista na classe média, “tem que dar certo”. Enquanto isto, na Bahia, alguns ex-“companheiros” são apanhados assaltando uma agência do Banco do Brasil.

O que retrataria melhor este momento, ou a maneira como o pensamento cinematográfico do país via este momento? Um jogo de palavras e imagens sobre encontros impossíveis e desencontros inevitáveis, como em A ESPERA (Luiz Fernando Carvalho e Maurício Farias/RJ)? A sarcástica destruição do conceito de documentário biográfico, onde a personagem é levada tão pouco a sério quanto a história ou o próprio cinema que se pretende histórico, tipo MA CHE BAMBINA (Cecílio Neto/SP)? Ou a apologia da indignação moral como forma de enfrentar a autoridade estúpida e construir uma ética, presente em O DIA EM QUE DORIVAL ENCAROU A GUARDA (José Pedro Goulart e Jorge Furtado/RS)?

O público e a crítica escolheram o crioulo Dorival, e gritaram junto que “milico e merda pra mim é a mesma coisa”. O júri dividiu o prêmio em três. A Nova República ainda era matéria polêmica.

VI

Pouco mais de um ano depois, no final de abril de 1987, a situação já era bem outra. O Cruzado 1 havia eleito uma Assembléia Constituinte não exclusiva, não soberana, não proporcional e majoritariamente PMDB. O Cruzado 2 fora a decepção, o 3 a desilusão. O Ministro Funaro estava caindo naquela semana. Mas, afinal, a Constituinte estava reunida desde fevereiro e ainda dava pra acreditar em alguma coisa. Momento indefinido, de expectativa, de transição.

Em Gramado, FRANKSTEIN PUNK (Eliana Fonseca e Cao Hamburguer/SP) era uma alegoria sobre a mistura de épocas, sobre um ser anacrônico e assustador que de repente se descobre amado, bonito, “moderno”. UAKTI OFICINA INSTRUMENTAL (Rafael Conde/MG), documentário sobre o grupo musical mineiro, sobre a origem indígena de seu nome, sobre sons e imagens que vêm do mato, “do coração do Brasil”.

O público e a crítica ficaram com o Frank, singing in the rain, happy again. O júri, talvez nacionalista, talvez ecológico, premiou Uakti. O retrato ainda estava borrado: a Constituição pode ter acabado como a criatura do Doutor Frankenstein, mas não era bem isso que a gente queria.

VII

Junho de 1988. O Plano Verão, quinto projeto de estabilização econômica da Nova República, começa a fazer água como os outros. O Centrão vira a mesa da Constituinte. Sarney consegue o quinto ano de mandato, “é dando que se recebe”. No Rio, a Polícia Militar invade a Rocinha, guerra civil. Vale tudo: “Brasil, mostra a tua cara”.

Em Gramado, três curtas chamam atenção. TRÊS MOEDAS NA FONTE (Cecílio Neto/SP): uma mulher abandonada e triste não consegue se matar e é perseguida na rua; mas não se trata de um assalto ou tentativa de estupro, o garoto só queria olhá la mais de perto, ela é bonita. BARBOSA (Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo/RS): um homem volta ao passado para mudar o resultado da Copa de 50, resolver a sua infância e salvar o Brasil, um país onde “nada nunca vai dar certo”; mas só consegue distrair o goleiro Barbosa e provocar o gol de Ghiggia. A VOZ DA FELICIDADE (Nelson Nadotti/RS): uma mulher solitária resolve se matar, quando recebe, por telefone, um prêmio num programa de TV; mas o apresentador, que “só queria vê-la sorrindo” não consegue impedir o gesto.

Três propostas de baixo astral, como convinha ao momento, mas com tons diversos. Ao final de Três moedas não há qualquer sinal de culpa, enquanto o viajante de Barbosa descobre ser ele próprio o culpado por tudo o que parecia errado no mundo. Já a mulher que ouve a voz da felicidade não chega a descobrir, mas seu sorriso post-mortem e o grito de Fausto Fawcett “Calcinha!” indicam claramente que o culpado está do outro lado da linha.

Júri e crítica concordaram que não havia saída, mas que o culpado deveria ser apontado: Sarney, o Centrão, Odete Roitman, Amaro Amaral - qualquer um, menos eu. O público, surpreendentemente, premiou a comédia POR DÚVIDA DAS VIAS (Betse de Paula/RJ), onde o culpado era a burocracia. Talvez o pessimismo não fosse assim tão unânime.

VIII

O verdadeiro ponto de partida desta tese foi ILHA DAS FLORES (Jorge Furtado/RS), premiado em 1989, ano que é fácil apontar como o da melhor safra de curtas da história do Festival. E premiado pelo júri, crítica e público, unanimidade que deve querer dizer alguma coisa. Ou deveria, se as premiações posteriores em Berlim, Clermont Ferrand, Hamburgo, etc, não indicassem tratar se de uma daquelas obras que transcendem o seu espaço e o seu tempo.

Mas quem estava em Gramado dia 15 de junho de 1989 ainda lembra: catarse, mecanismo de identificação, magia do cinema, bairrismo gaúcho, efeito de laboratório behaviorista - nada explica isoladamente o que aconteceu naqueles 13 minutos. Tínhamos uma Constituição, novas propostas políticas na maioria das capitais e estávamos em plena campanha presidencial, 28 anos depois de Jânio e o resto. As pesquisas, é verdade, mostravam Collor na frente, mas ninguém acreditava nas pesquisas. Uma outra, mais direta, feita pela jornalista Maria do Rosário Caetano entre uma centena de participantes do Festival, indicou Brizola em primeiro, Lula em segundo, Covas em terceiro. Collor só teve 3 votos. A cidadania estava presente, era óbvio que o país estava se transformando.

Naqueles históricos 13 minutos, fomos atingidos todos, mesmo os que haviam participado do filme, pela enunciação de um irretocável teorema ético e dialético sobre a lógica perversa do capitalismo (brasileiro?), cujo corolário implícito era a nossa necessidade e possibilidade concreta de intervenção. Se existe uma situação em que é perfeitamente lógico que seres humanos se alimentem de lixo, em grupos organizados, com tempo limitado e depois de separada a parte destinada aos porcos, então a lógica definitivamente não é suficiente. E se esta situação ocorre a poucos quilômetros do centro de uma de nossas grandes cidades, então a Ilha das Flores é o mais acabado retrato do país que vai começar a desaparecer dentro de poucos meses.

Treze minutos de filme, outros tantos de aplausos. Nós, produtores/consumidores de uma forma de reflexão audiovisual já àquela altura totalmente afastada do grande público, parecíamos ignorar o que era possível fazer numa simples ilha de edição de telejornalismo.

IX

E assim chegamos a julho de 1990. Ora, todo mundo sabe o que aconteceu em 1990. Basta lembrar que o Festival de Gramado se propôs a ser, até no cartaz, o clarão nas trevas, a luz no fim do túnel. Era para ser um festival de discussão de alternativas, de encontro com as novas autoridades da cultura do país, de diálogo com os exibidores, de agitação. Um festival de protesto contra a morte.

Mas não foi. As autoridades não vieram, o papo com os exibidores virou conversa de surdos, as alternativas não surgiram, os protestos foram tímidos. E a premiação dos curtas, mais uma vez, refletiu o clima geral.

MEMÓRIA (Roberto Henkin/RS), apontando algumas incômodas semelhanças entre o Brasil Novo e o Brasil de sempre, seria premiado em Brasília (coincidentemente a capital destes dois países) três meses depois, mas não soou bem no clima duplamente frio de Gramado.

ESPECTADOR (Tadeu Knudsen/SP), sobre a construção de uma personagem fictícia através de artifícios de montagem na TV, e sobre um cara que acredita nas imagens que vê e se apaixona por elas, levou o prêmio da crítica, mas também não atingiu o alvo.

Júri e público de Gramado premiaram ARABESCO (Eliane Caffé/SP), história um tanto surrealista de dois assaltantes que entram numa casa e não conseguem sair, nem entender o que está acontecendo. É claro, aí estava o verdadeiro retrato. Nos primeiros meses da era Collor, e ao contrário das expectativas dos organizadores do festival, o cinema brasileiro não estava tentando explicar ou entender o que havia acontecido. Ninguém vestiu a carapuça do país sem memória, ou do espectador enganado. Talvez na falta de uma opção mais clara pela raiva (sempre a catarse!), vimo-nos todos na pele dos dois ladrões do arabesco: perplexos.

X

Cacá Diegues uma vez escreveu que o cineasta brasileiro perdera o direito ao delírio, pois passava tanto tempo discutindo formas de viabilizar seu filme que acabava esquecendo o próprio filme. Sem querer defender o apocalipse mas tentando superar a perplexidade, eu diria que talvez este ano e meio de quase impossibilidade de viabilizar qualquer coisa tenha servido para reaprender a delirar.

Talvez os novos filmes (afinal, pelo menos os paulistas não pararam de fazer curtas) retratem um novo momento. Ou talvez a prática do delírio nos tire essa responsabilidade de retratar momentos. Talvez, enfim, nós tenhamos perdido definitivamente o controle da câmara escura. Mas isso fica para discutir depois de Gramado 91.

XI (pós escrito)

Na tentativa de atualizar este texto, não consigo encontrar qualquer nexo do tipo proposto acima entre os filmes premiados em Gramado 91 e os sentimentos vividos pelo país em agosto deste ano. Mas sim! há algo a dizer, que não tem nada a ver com os filmes e tudo a ver com o cinema. WHOLES (Cecílio Neto/SP), melhor curta do júri oficial, e ESTA NÃO É A SUA VIDA (Jorge Furtado/RS), melhor curta segundo a crítica, foram ambos totalmente financiados por uma TV estatal inglesa. Se quisermos estender um pouco a análise, A GUERRA DOS MENINOS (Sandra Werneck/RJ), melhor média, só foi concluído graças à co-produção com uma TV estatal francesa, e PROJETO PULEX (Tadao Miaqui/RS), melhor curta 16mm, só existe devido a um antigo acordo entre a extinta Fundação do Cinema Brasileiro e um organismo estatal canadense. O cinema brasileiro tem saída. Esperemos que não seja o exílio.

(c) Giba Assis Brasil 1991
publicado originalmente na revista Porto & Vírgula Nº 5, setembro de 1991