GRAUS DE REALIDADE NO AUDIOVISUAL

por Giba Assis Brasil
27/08/2002

Mesa “Cinema: entre o real e a ficção”, abertura do seminário “Cinema e Ciências Sociais”, UERJ, Rio de Janeiro.

Mais de vinte anos atrás, quando eu era um estudante de jornalismo e nem pensava na possibilidade de vir a trabalhar com cinema, aconteceu de a censura do governo militar liberar para exibição comercial no Brasil os primeiros filmes com cenas de sexo explícito: primeiro “O Império dos sentidos”, filme japonês de Nagisa Oshima, que já havia provocado polêmica no Festival de Cannes, e logo depois o similar nacional “Coisas eróticas”, uma espécie de “evolução forçada” do que até então se chamava de pornochanchada - forçada porque não tinha mais nada de chanchada e evolução porque, afinal de contas, chegava-se a um gênero definitivamente pornográfico.

Independentemente das diferenças entre os dois filmes, ambos foram sucesso de público - “O Império dos sentidos” chegou a ficar um ano em cartaz num mesmo cinema de Porto Alegre, e “Coisas eróticas”, em menos tempo, fez um número bem maior de espectadores. E eu me lembro de, na época, ter conversado sobre isso com um motorista de táxi. Nosso trajeto passava pela frente do cinema que estava exibindo um dos filmes, comentamos alguma coisa, descobrimos que nós dois havíamos visto ambos os filmes, a comparação era inevitával. E o motorista de táxi me disse: “Coisas eróticas” é melhor porque é “mais real”.

Não me surpreendeu nem um pouco o fato de o cara preferir o “Coisas eróticas” ao “Império dos sentidos”. Mas na época me pareceu surpreendente, e continua me parecendo digno de nota, que o critério de qualidade usado tivesse sido justamente o “grau de realidade” dos dois filmes. Na verdade, foi a primeira vez que me ocorreu que pudesse haver um grau de realidade associado a um filme, e que esse grau pudesse ser avaliado, eventualmente medido.

Pensando um pouco sobre o assunto, eu cheguei à conclusão de que o meu amigo motorista de táxi queria dizer exatamente o contrário do que ele disse: “O Império dos sentidos” era tão mais real, tão mais parecido com a vida sexual e sentimental verdadeira, dele, minha e de qualquer ser humano, que se tornava impossível abstrair essa realidade referencial e perceber o filme como uma fantasia masturbatória. Ao contrário do “Coisas eróticas” que, mesmo sendo o primeiro filme de sexo explícito visto por ele, já seguia um certo tipo de convenção narrativa, que dialogava com a tradição do conto erótico, dos quadrinhos eróticos, das fotonovelas do gênero, etc., e que se prestava exatamente para o objetivo que ele ou qualquer espectador, eu inclusive, persegue ao ver esse tipo de filme.

Muitos anos depois, eu li no Umberto Eco, “Seis passeios pelos bosques da ficção”, uma ótima definição do que seria o formato de linguagem utilizado pelo filme pornográfico. Segundo ele, a característica essencial deste gênero seria a falta de elipses, o tempo contínuo: na elaboração audiovisual da fantasia masturbatória, o tempo do ato sexual filmado tem que ser igual ao tempo de um ato sexual real, e essa obrigação termina contaminando mesmo as cenas não sexuais dos filmes do gênero. Umberto Eco chegou a criar um teste definitivo: se, num filme, um personagem leva, para ir do quarto até o banheiro, exatamente o tempo que uma pessoa levaria, na realidade exterior ao filme, para ir daquele quarto até aquele banheiro, pode ter certeza de que se trata de um filme pornográfico.

O que pode ser inferido empiricamente, daquela minha experiência com o motorista de táxi, e de observações como esta do Umberto Eco sobre o uso da linguagem nos filmes pornográficos, é que, de certa forma, os gêneros cinematográficos se caracterizam pelo “grau de realidade” que se espera deles como espectador. E este grau de realidade se manifesta não só no material filmado e mostrado ao espectador, mas principalmente em algumas convenções narrativas - ou seja, na utilização da linguagem.

Já na primeira sessão de cinema, organizada pelos irmãos Lumière dia 28 de dezembro de 1895 em Paris, surgem os dois super-gêneros que vão criar duas tradições paralelas na história do audiovisual: a ficção e o documentário, então precariamente entendidos como “tudo o que se encena para a câmara” e “tudo o que a câmara capta independentemente de encenação”. Documentários primitivos como “A Saída da fábrica” ou “A Chegada do trem na estação” tinham a pretensão de captar a realidade sem interferir nela, o que talvez até fizesse sentido enquanto ninguém - nem os operários que saíam da fábrica, nem mesmo o operador da câmara - soubesse exatamente para que uma câmara servia. Uma ficção primitiva como “O Jardineiro molhado” (ou “O Regador regado”, dependendo da tradução) tinha a inocência de encenar uma historinha simples na frente da câmara, sem perceber todas as implicações dessa encenação. De qualquer maneira, as diferenças de “grau de realidade” entre os dois super-gêneros eram evidentes.

Hoje em dia, o fenômeno audiovisual se expandiu tanto e em tantas direções que, mais do que em gêneros, me parece que é necessário falar em formatos. O formato do filme de longa-metragem de ficção permanece há décadas como o produto dominante da indústria cinematográfica, caracterizando-se por um número crescente de convenções narrativas e também por um certo “grau de realidade” que o liga ao espectador. Dentro do acordo da “suspensão da descrença” presente em qualquer narrativa, nós fingimos acreditar na história que está sendo contada, nos emocionamos com ela, nos identificamos com o protagonista, etc., mas no final nós (ou pelo menos a maioria de nós) saímos da sala escura com a certeza de que aquilo era “apenas um filme”. Assim como o compositor Nelson Sargento disse com propriedade a respeito de um outro assunto: “O nosso amor é tão bonito / ela finge que me ama / e eu finjo que acredito”.

A relação muda um pouco nos filmes ficcionais que são “baseados em fatos reais”. Quando da exibição internacional de “Amadeus”, moradores da cidade de Legnago, na Itália, protestaram contra a cena em que seu ilustre conterrâneo, o compositor Antonio Salieri, assassina o rival Mozart, o que ocorre no filme de 1984, mas de fato não aconteceu em 1791. No Brasil, pessoas ainda vivas foram retratadas com seus nomes reais e atitudes ou posições fictícias em “O que é isso, companheiro?”, gerando uma polêmica que contrastou uma ética da ficção “pura” a uma ética da ficção “baseada em fatos reais”.

Porque na verdade, sendo a linguagem audiovisual uma só, os únicos limites possíveis entre os diferentes formatos dizem respeito apenas a questões de ética.

Alguém vem caminhando e pisa numa casca de banana. Nesse enunciado banalíssimo, temos os elementos fundamentais da narrativa: um protagonista (o sujeito que caminha), um objetivo (ir de um lugar para outro), um obstáculo gerador de conflito (a casca de banana) e algumas possíveis resoluções (o sujeito vai escorregar, vai cair, vai se machucar?) Este pode ser o argumento de qualquer produto audiovisual de ficção, desde que a situação narrada (alguém vem caminhando e pisa numa casca de banana) seja captada por uma câmara. Ou melhor, para que seja ficção, o “grau de realidade” tem que corresponder ao esperado: o ator que encarna o sujeito deve fingir escorregar na casca de banana, e o espectador deve fingir acreditar que isso aconteceu.

A partir daí, podemos pensar nas diferenças de gêneros. É claro que a situação em si nos remete à comédia: o inesperado, o ridículo, a queda engraçada, rir do outro para não rir de si mesmo. Mas, se a câmara mostrar primeiro a casca de banana e depois o sujeito que se aproxima, e se a trilha sonora tiver um tom grave e sério, podemos imaginar a mesma situação num filme de suspense. Se, antes da cena da queda, ficarmos sabendo que o sujeito está desempregado e acabou de ser abandonado pela mulher, e se depois da queda a câmara mostrar os seus olhos cheios de lágrimas, o patético da situação pode aproximá-la de um drama, ou melhor, de um melodrama. Não vou sugerir para que propósitos poderiam servir em seguida a casca ou mesmo a banana, mas é fácil visualizar esta mesma situação como parte até mesmo de um filme pornográfico - desde que não haja elipses, conforme Umberto Eco.

De qualquer forma, me interessa aqui discutir não as diferenças de gêneros, mas as diferenças de formatos - até porque, entre os gêneros ficcionais, o “grau de realidade” esperado é aproximadamente o mesmo, e se situa apenas dentro dos limites do acordo de “suspensão da descrença”.

Há ainda outros formatos ficcionais, com diferentes exigências de grau de realidade. O sujeito pisa na casca de banana mas não cai, e a câmara mostra por quê: detalhe na sola do sapato marca Tal, a sola que não escorrega - isso é um comercial. O sujeito vem cantando, escorrega e a música continua no mesmo ritmo, sem alteração significativa de volume - trata-se de um vídeo-clipe. O sujeito cai, mas um locutor explica que, se Fulano de Tal for eleito, as ruas serão mais limpas e seguras - propaganda política. E assim por diante.

Mas como poderíamos caracterizar uma abordagem documental para esta situação simples - alguém vem caminhando e pisa numa casca de banana? Um telejornal chegaria ao local poucos minutos após a queda, o repórter apontaria para a casca de banana no chão, mostraria o sujeito machucado, quem sabe declarando alguma coisa sobre o perigo das cascas jogadas em locais de trânsito de pedestres, etc. Mas um telejornal, embora use uma abordagem documental, não é um documentário.

Eventualmente, o telejornal poderia mostrar o momento real da queda, captada acidentalmente pela câmara nervosa e tremida de um “cinegrafista amador” - mas isso também não seria um documentário, e sim a elevação ao horário nobre do noticiário daquilo que nós costumamos chamar de “vídeo-cassetada”. Ou atores poderiam reconstruir a cena da queda, buscando o máximo possível de elementos retirados do relato testemunhal dos diretamente envolvidos - quantos passos deu o sujeito antes de cair, onde estava a casca, como foi a queda, etc. O produto audiovisual resultante poderia ser caracterizado como “docudrama” ou “telejornalismo verdade”, um formato bastante comum na televisão atual, mas certamente não um documentário.

De repente, o repórter se torna “diretor de cena”: joga uma casca de banana num local de trânsito de pedestres, esconde uma câmara e espera que alguém escorregue para documentar a queda - é o que nós temos chamado de “pegadinha”, ou a vídeo-cassetada com premeditação. O mais surpreendente não é que alguém numa emissora de tevê tenha a idéia de realizar um produto audiovisual dessa natureza, ou que milhares de espectadores se deliciem em assisti-lo, mas sim que o sujeito que escorrega permita que utilizem a imagem de sua queda, sem outra compensação a não ser o compartilhamento com amigos, parentes e com o “resto do mundo” dos seus poucos momentos de exposição ao ridículo.

Mais recentemente, surge um novo formato, conjugando a produção “profissional” da pegadinha com o acaso da vídeo-cassetada, e ampliando a exposição até o insuportável, numa tentativa de aumentar o grau de realidade do produto: confinam-se dez sujeitos e uma certa quantidade de bananas num ambiente fechado, com cinqüenta câmaras mostrando todos os escorregões que acontecem lá dentro - mas o tal “reality show” também não é documentário.

Documentário, se é que faz sentido procurar defini-lo, é apenas o filme que faz a pergunta que ainda não foi feita - sobre a banana, sobre a casca, sobre o sujeito que escorrega - e que, a partir do ponto de vista pessoal do documentarista, mostra a pergunta sendo feita, mas não dá a resposta. Sim, porque, se o filme enuncia claramente a resposta, talvez se trate de um filme didático, ou mesmo científico, mas não documentário.

Na década de vinte, um cineasta soviético chamado Leon Kulechov fez uma experiência que ficou famosa. Ele filmou o rosto do ator Msojukine olhando com atenção para coisa nenhuma, e depois cortou essa imagem em vários pedaços e montou-a intercalada com outras: uma criança brincando, uma mulher tomando banho, um morto num caixão, um prato de sopa fumegante. Kulechov então projetou esse pequeno filme para um público desavisado. Segundo consta, os espectadores elogiaram muito a interpretação do ator, que era capaz de, com sutis alterações faciais, demonstrar enternecimento diante da criança, desejo em relação à mulher, pesar pela morte de um parente e até mesmo fome frente à sopa. É claro que o ator, na hora da filmagem, sequer sabia para que seria usada a sua imagem, portanto não estava interpretando nenhum deses sentimentos identificados pelo público. Mas, para o público original da experiência de Kulechov, aquele personagem estava realmente reagindo àqueles estímulos.

A conclusão de Kulechov foi de que cada plano (pedaço de filme rodado sem interrupção) não tem significado em si, que ele só passa a ter significado quando montado entre outros dois planos, e que este significado resulta necessariamente da relação entre cada plano, o plano que vem antes e o plano que vem depois dele na montagem. Essa tese foi fundamental para os filmes e as teorias de Eisenstein, para toda a escola soviética de cinema e, de certa forma, para toda a história da montagem cinematográfica. Mas, hoje em dia, me parece óbvio que se tratava de uma tese exagerada.

Uma platéia de hoje, acostumada com a linguagem audiovisual desde a infância, provavelmente veria o filme-experiência de Kulechov como uma provocação, e perceberia a intenção, mas também a montagem: “estão querendo me dizer que este personagem está reagindo a estes estímulos”. Para convencer uma platéia atual, é necessário um maior grau de realidade, que pode ser obtido através de movimentos de câmara, edição de som coerente, um “código” de expressões faciais mais elaborado, etc.

Ao contrário, a platéia francesa que foi ao Grand Café em 28 de dezembro de 1895 para assistir à primeira sessão do cinematógrafo Lumiére, platéia totalmente virgem de qualquer conceito de linguagem audiovisual, veria o filme-experiência de Kulechov e provavelmente perguntaria: “por que tantos filmes, um depois do outro? por que tantas repetições do filme desse ator? por que só vemos a cabeça dele?”

A conclusão, hoje evidente, é que o significado de um plano não se configura nem na filmagem, nem na montagem, embora os dois processos colaborem para a a sua construção. O significado final do plano, o que realmente interessa, só passa a existir na cabeça do público quando o filme é projetado - e, portanto, depende do público, da época em que o filme é feito, do estado da linguagem audiovisual no momento da projeção e do grau de conhecimento que este público tem da linguagem.

Sendo todo produto audiovisual o resultado de uma tentativa de expressão, sendo essa expressão operada a partir de uma linguagem, e sendo esta linguagem construída em conjunto pelas pessoas que fazem produtos audiovisuais e pelas pessoas que os consomem, então todo produto audiovisual, seja ele um filme hollywoodiano, um curta-metragem alternativo, um documentário, um comercial de TV, um vídeo pornográfico, um capítulo de telenovela ou uma matéria de telejornal - todo produto audiovisual é discurso. Se é discurso, então é porque tem alguém do outro lado da câmara formulando esse discurso.

Se um sujeito entra num cinema metralhando os espectadores e se diz influenciado pela violência do filme que está sendo projetado, a responsabilidade é do filme ou de uma dificuldade desse sujeito, e de todos nós em geral, em perceber o grau de realidade de um produto audiovisual em particular? Se um jornalista edita um debate eleitoral dando mais destaque para o seu candidato e isso acaba influenciando no resultado da eleição, trata-se apenas de liberdade de imprensa ou o público foi enganado, já que esperava o grau de realidade de um telejornal e não o de uma propaganda partidária? São dois casos bem diferentes, é claro, mas ambos dizem respeito à ética da produção de imagens. Nos dois casos, alguém pisou na casca de banana - o público daquele cinema, a democracia daquele país. Cabe aos documentaristas perguntar por quê.

(c) Giba Assis Brasil 2002