MONTAGENS, TRUCAGENS E OUTRAS SACANAGENS

por Giba Assis Brasil, 2002

Há uns 8 anos, eu e o Jorge Furtado temos o projeto de realizar um documentário chamado O POVO E O EM NOME DO POVO. Trata-se de um filme sobre a imagem do povo brasileiro na TV, ou sobre a história das relações entre mídia e democracia, ou ainda um duplo relato pessoal sobre o nosso envolvimento com campanhas políticas desde 1992. Muito assunto pra um filme só, é claro, e é provavelmente por isso que, até hoje, ele ainda não foi feito.

Em 1994, o Congresso brasileiro inovou ao criar uma Lei (a número 8713) que se propunha a “evitar abusos” no Horário Eleitoral Gratuito, determinando que eram proibidas “montagens e trucagens”, sem se preocupar (ainda bem!) em definir os dois termos. Mas o Tribunal Superior Eleitoral foi mais longe, ao tentar regulamentar os limites do que poderia ser exibido nos programas. Escreveu o Juiz Carlos Veloso, no processo TSE 14.475, aprovado por seus pares: “especificamente não podem participar pessoas do povo”.

Este foi o nosso ponto de partida para o projeto do filme. Os deputados tentando criar, em nome do povo, um produto audiovisual “sem montagem”. Os juízes, sempre em nome do povo, procurando manter as “pessoas do povo” longe da TV. E o povo, em seu próprio nome impossibilitado sequer de mudar de canal, mas quem sabe esperando pelo Ratinho ou pelo Big Brother na próxima atração.

Algum tempo depois, o Jorge tentava pensar sobre nossas possíveis motivações para fazer este filme, tocar neste assunto, voltar a este projeto, e me escreveu o seguinte:

“Há também em nós, certamente, uma irritação em perceber o truque e o sorriso falso do ilusionista, em contraste com os olhos brilhantes das criancinhas que batem palmas pela transformação do coelho em pomba.”

Pra mim, foi aí que caiu a ficha. Mas eu completei que a nossa irritação não é com o truque. Pelo contrário, o truque nos fascina. É o truque que nos prende ao fazer cinema. (Pra usar a terminologia do TSE, “truque” não no sentido de “trucagem”, mas de “montagem”.) De qualquer maneira, não é o truque que nos irrita. O que irrita é o fato de que as pessoas acreditam nele. Nossa irritação, no fim das contas, é com as pessoas. É com o povo. Ou com as pessoas, por insistirem em ser povo e acreditar nos truques.

Se alguém me mostrasse, no dia 13 de dezembro de 1989, a edição do debate dos candidatos em que só o Collor dizia coisas interessantes e só o Lula vacilava, eu ia achar engraçado. Talvez propusesse uma ainda mais radical, com o Lula gaguejando enquanto o Collor fazia um discurso brilhante e coerente sobre probidade administrativa e a nossa poupança. E depois ia fazer outra, contrária, com o Collor roubando o aparelho de som do Lula e levando pros jardins da Casa da Dinda. Enfim, ia me divertir. O truque e suas possibilidades me diverte. É uma das coisas que eu acho que sei fazer.

Mas se quem me mostrasse aquela edição fosse o próprio Alberico Souza Cruz (editor do Jornal Nacional na época), eu ia perguntar, desconfiado: o que é que você vai fazer com isso? E se aquilo fosse ao ar, como foi, eu ia dizer: que merda!, pensando, com os botões do meu controle remoto, que aquela montagem poderia influir no resultado da eleição!

Porque, no fim das contas, a gente (pensa que) conhece o povo.

Não existe filme (ou vídeo, ou comercial, ou clipe, ou programa de televisão, ou qualquer produto audiovisual) sem montagem, e isso há mais de cem anos, desde que o norte-americano Edwin Porter (ou algum dos ingleses da Escola de Brighton) juntou pedaços de filme pra criar significados e descobriu que estava construindo uma linguagem. A montagem ou não montagem não se define por uma boa ou má intenção, que um legislador, bem ou mal intencionado, possa identificar e proibir.

Mas é exatamente por isso, porque alguém escolhe o que vai e o que não vai ser mostrado, que existe uma linguagem audiovisual, dando forma a produtos tão diferentes quanto um drama do Bergman e uma telemissa do Padre Marcelo. Por isso quem escolhe tem que levar em consideração a expectativa e a capacidade de percepção, por parte de quem assiste, de que existe um processo de escolha. Quem escolhe tem que ser ético.

Por isso o Horário Eleitoral Gratuito, ao mostrar em seqüência várias versões de um mesmo fato, ainda que todas sejam distorcidas, é muito mais democrático que a maioria dos nossos telejornais. (Ou pelo menos era, até que o Congresso e o TSE começassem a tentar definir as montagens possíveis e as proibidas - de preferência, com o povo do lado de fora.)

Provavelmente o primeiro caso relatado e documentado de ALTERAÇÃO RADICAL E INTENCIONAL DE SENTIDO ATRAVÉS DO USO DA MONTAGEM seja o do “Danton” na União Soviética. Vamos voltar às fontes. A primeira vez que eu li sobre o episódio foi na “História do Cinema Mundial” do Georges Sadoul (Livros Horizonte, Lisboa, 1983). Está lá, na página 19 do volume 1:

“S. M. Eisenstein citou em FILM FORM um significativo exemplo de adapatação que modificava o sentido inicial de um filme. No filme alemão DANTON (1921, realizador Buchowetzki), quando Camille Desmoulins era condenado à morte Danton cuspia na cara de Robespierre, que em seguida limpava o rosto com o lenço. Na versão adaptada para a URSS por Boitler desaparecia o conflito entre os dois chefes revolucionários; mas conservou-se o plano em que Robespierre limpava o rosto e, para dar a impressão de que Robespierre chorava, foi intercalada a seguinte legenda ‘explicativa’: ‘a bem da liberdade, tenho que sacrificar o meu amigo Camille Desmoulins’.”

A fonte original, portanto (ou uma boa tradução dela) é “A Forma do Filme”, de Sergei Eisenstein, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Na página 20:

“Qualquer um que tem em mãos um fragmento de filme a ser montado sabe por experiência como ele continuará neutro, apesar de ser parte de uma seqüência planejada, até que seja associado a um outro fragmento, quando de repente adquire e exprime um significado mais intenso e bastante diferente do que o planejado para ele na época da filmagem.

“Este foi o fundamento da inteligente e perversa arte de remontar o trabalho de terceiros, cujos exemplos mais profundos podem ser encontrados durante o alvorecer da nossa cinematografia, quando todos os principais montadores de filmes - Esther Schub, os irmãos Vassiliev, Benjamin Boitler e Birrois - estavam ocupados em retrabalhar criativamente os filmes importados após a revolução.

“Não posso resistir ao prazer de citar aqui uma montagem ‘tour de force’ deste tipo, executada por Boitler. Um filme comprado na Alemanha foi DANTON, com Emil Jannings. Foi mostrada, em nossas telas, a seguinte cena: Camille Desmoulins é condenado à guilhotina. Muito agitado, Danton corre a Robespierre, que lhe dá as costas e vagarosamente enxuga uma lágrima. A legenda dizia, aproximadamente, “em nome da liberdade, tive de sacrificar um amigo…” Fim.

“Mas quem poderia imaginar que, no original alemão, Danton, apresentado como indolente, mulherengo, excelente camarada e única figura positiva no meio de personagens cruéis, correu para o diabólico Robespierre e… cuspiu no seu rosto? E que foi esse cuspe que Robespierre enxugou com um lenço? E que a legenda indicava o ódio de Robespierre a Danton, um ódio que no final do filme motiva a condenação de Jannings-Danton à guilhotina?!

Dois pequenos cortes reverteram todo o significado desta cena!”

E nós, o que temos? Duas versões de um mesmo fato. E muda tudo.

Em primeiro lugar, muda a forma de identificação do filme: o diretor Eisenstein se refere à estrela; o crítico Sadoul, ao diretor: um filme com Emil Jannings, um filme do realizador Buchowetzki. Claro que nesses 37 anos (o texto de Eisenstein é de 1929, o de Sadoul de 1966), surgiu e se desenvolveu a tal “teoria do autor”, com a participação de contemporâneos e discípulos de Sadoul. Mas há outro dado: Dimitri Buchowetzki era um ator e diretor russo que emigrou para a Alemanha em 1919, pouco depois da Revolução, e apenas 10 anos antes do texto de Eisenstein.

Em segundo lugar, muda completamente o tom em que o episódio é contado. Sadoul, mesmo sendo um socialista como Eisenstein, não deixa de ser um historiador: embora ele não adjetive em nenhum momento a ação de Boitler, está claro que ele considera a modificação do filme original quase como um crime - na página seguinte, ao relatar as mudanças feitas no ENCOURAÇADO POTEMKIN pela censura alemã, Sadoul usa a palavra “mutilação”. Já Eisenstein rejubila-se, não consegue “resistir ao prazer” de contar como os seus camaradas conseguiram melhorar um filme decadente. Seria interessante ver como um crítico liberal norte-americano comentaria hoje essa história.

Mas a mais importante diferença que se constata entre estas duas versões é mesmo a ordem dos fatores. Sadoul conta como o filme era na versão original, e depois como ele ficou após a alteração. Eisenstein conta como o filme foi exibido na União Soviética, e depois como ele era originalmente: ou melhor, conta como o filme “deveria ter sido desde o início” e, depois, como ele “acidentalmente” tinha sido na versão alemã. Ou seja: mesmo ao se escrever (ou falar) sobre os filmes, usa-se a montagem!

Eisenstein dizia que a montagem é o único processo absolutamente original da arte cinematográfica. Eisenstein dizia que a montagem não é exclusiva do cinema ou da arte como um todo, mas é um processo que faz parte da forma de funcionamento do cérebro humano. Todo semestre eu tento explicar aos meus alunos na Fabico que Eisenstein estava falando de duas montagens diferentes, mas que elas são a mesma montagem. Não sei se eu consigo. Mas acho que explicar pro pessoal do TSE seria ainda mais difícil.

(c) Giba Assis Brasil 2002
(Publicado originalmente na revista Vox XXI, Porto Alegre/RS, em julho/2002; e também na revista Plano Geral, Aracaju/SE, janeiro/2003)