O SUJEITO EXTRAORDINÁRIO E A MIMESIS CAMUFLADA

O SUJEITO EXTRAORDINÁRIO E A MIMESIS CAMUFLADA:
a representação da realidade no cinema.

ou: Dois graus e meio de separação e as crianças das cidades do vale.
ou ainda: Por que desisti de fazer documentários.

por Jorge Furtado
21/03/2003

(anotações para a “Terceira conferência internacional do documentário: imagens da subjetividade”. Mesa: o sujeito extraordinário, com Eduardo Coutinho e Ismail Xavier. São Paulo, 09-11/04/2003.)

Sempre desconfiei que a proporção 1/1,66, o formato mais comum da imagem cinematográfica, deveria ter alguma relação com a proporção do retângulo áureo, 1/1,618, o número natural (a:1 :: 1:1+a ou 0,618/1 = 1/1,618) em que se apóia a arquitetura clássica grega e, por conseqüência, a pintura renascentista. Minha desconfiança é tomada como certeza por David Mamet que, em seu estudo “Três usos da faca: sobre a natureza e a finalidade do drama”, afirma que a lente de 35mm tem seu padrão de altura e largura baseado no Partenon. (1) Mas, excluído este padrão comum (que, reconheço, não é de pouca importância), sempre estranho o uso do termo “clássico” associado ao cinema. O que seria um filme “clássico”?

O cinema nasceu faz pouco e já nasceu múltiplo. Se Lumière, fascinado pela “magnífica impressão da vida real” provocada por sua invenção, buscou representar “naturalmente” a realidade observada ou encenada, Méliès, ao contrário, procurou logo criar, através do cinema, uma nova realidade, filha da mágica e da poesia. (Se pudéssemos - e felizmente não podemos - dividir o cinema em dois grandes grupos, cujos patronos seriam Lumière e Méliès, sou Méliès de carteirinha, o realismo nunca me enganou.) Volto ao início: o que seria, portanto, um filme clássico?

As primeiras acepções da palavra “clássico” registradas pelo dicionário, “relativo à arte, à literatura ou à cultura dos antigos gregos e romanos” ou “que segue, em matéria de artes, letras, cultura, o padrão desses povos”, só serve ao cinema para definir seus limites físicos na tela. Outros sentidos da palavra “clássico”, “da mais alta qualidade; modelar, exemplar” (carros ou vinhos) ou “sem excessos de ornamentação; simples, sóbrio” (vestidos ou sapatos) são vagos demais ou puramente subjetivos, não ajudam muito.

Na linguagem coloquial, quando alguém se refere a “um clássico do cinema” ou a “um filme clássico” está usando ainda outro sentido da palavra, afirma que seu “valor foi posto à prova do tempo” e que, portanto, trata-se de um bom filme “antigo”. Mas quando o crítico Inácio Araújo afirma - acredito que com razão - que meu filme Houve Uma Vez Dois Verões “busca como referencial o cinema clássico” ou quando a USP dá um curso com um módulo chamado “Cinema Clássico, expondo os princípios da linguagem clássica do cinema”, tenho que recorrer a outra acepção que o dicionário me oferece da palavra “clássico”: “que segue os cânones preestabelecidos; acorde com eles”. Clássico seria, portanto, o filme que segue o padrão hoje dominante. Que padrão é este? Podemos buscar a resposta analisando a estrutura dramática e os procedimentos narrativos do cinema americano nos últimos 50 anos (pelo menos).

Como estrutura dramática, o padrão é a narrativa em três atos, com um protagonista que recebe um “chamado à aventura” e segue, com possíveis variações, as etapas descritas por Joseph Campbell em “O Herói de Mil Faces” (e também por Christopher Vogler em “A Jornada do Escritor”, espécie de versão cinematográfica dos estudos de Campbell). Em resumo: descrição do mundo comum, o herói-protagonista é chamado à aventura, inicialmente recusa, encontra o mentor e acaba aceitando o convite, viaja ao mundo especial (oposto ao mundo normal onde a história começa), recebe a chave, ultrapassa um portal, enfrenta provas, conhece inimigos e aliados, desobedece o mentor, enfrenta o antagonista, triunfa e regressa, transformado, ao mundo normal para dividir com seus pares (e com os espectadores) os frutos (o elixir) e descobertas de sua aventura.

É uma estrutura simples mas é, sem dúvida, clássica, já que remonta às origens das fábulas e, portanto “seu valor foi posto à prova do tempo”. Seria ainda, numa visão junguiana, uma estrutura “natural” e “orgânica”. Jung pensava que “exatamente como o corpo humano representa um verdadeiro museu de órgãos, cada qual com sua longa evolução histórica, da mesma forma deveríamos esperar encontrar também, na mente, uma organização análoga, um inconsciente coletivo. Nossa mente jamais poderia ser um produto sem história, em situação oposta ao corpo, no qual a história existe”.

“No Inconsciente Coletivo existem, segundo Jung, estruturas psíquicas ou arquétipos, formas sem conteúdo próprio que servem para organizar ou canalizar o material psicológico. Eles se parecem um pouco com leitos de rio secos, cuja forma determina as características do rio. (…) Jung também chama os arquétipos de imagens primordiais, porque eles correspondem freqüentemente a temas mitológicos que reaparecem em contos e lendas populares de épocas e culturas diferentes. Os mesmos temas podem ser encontrados em sonhos e fantasias de muitos indivíduos. De acordo com Jung, os arquétipos, como elementos estruturais e formadores do inconsciente, dão origem tanto às fantasias individuais quanto às mitologias de um povo”. J. Fadiman, R. Frager, Teorias da Personalidade

Se a estrutura dramática do cinema “clássico” pode ter algo de natural e orgânico, seus procedimentos narrativos são apenas convenções eficientes: personagens que desconhecem a presença da câmera, atuam e falam segundo o que se convencionou chamar de naturalismo; cenas que mostram só aquilo que serve ao desenvolvimento da fábula; cenários, figurinos e situações que simulam uma realidade possível; nada de dúvidas ou ações sem justificativa. A linguagem deve permanecer escondida, de modo que o espectador em nenhum momento lembre-se de estar no cinema. O padrão é a ficção, onde a “suspensão da descrença” permite usufruir com segurança o prazer do jogo dramático.

Desconfio que, ao chamarmos este tipo de cinema de “clássico”, estamos utilizando as últimas e menos nobres acepções da palavra clássico: “famoso por se repetir ao longo do tempo; tradicional” ou, ainda pior, “costumeiro, habitual”. Clássico seria, portanto, um filme banal. Qualquer alteração nestes padrões são imediatamente saudadas (ou repelidas) como inovações: os personagens que falam olhando para a câmera em Godard ou Woody Allen; a alteração da cronologia em Pulp Fiction; a inexplicada chuva de sapos em Magnólia; as fábulas incompreensíveis de David Lynch; a falta de concentração dramática em Jim Jarmusch; o tom não-realista, no limite da farsa, dos irmãos Cohen ou de Almodóvar, só para citar alguns exemplos.

O cinema nasceu mutante. Se é verdade que podemos estabelecer algumas escolas predominantes em diferentes décadas (cheguei a escrever “épocas”, mas a palavra é ampla demais para se referir a fatias de tempo tão curtas), também é verdade que, em cada década encontramos filmes de todos os tipos e gêneros. A tentativa de colocar todos os filmes de um período na mesma prateleira é sempre falha e responsável por grandes injustiças. Ouvi falar tanto nas maravilhas do Cinema Novo que só recentemente vi um dos melhores filmes do período, “Todas as mulheres do mundo”, de Domingos de Oliveira, um clássico (seu “valor foi posto à prova do tempo”) que, visto hoje, me causa tanto prazer estético (ou mais) e me fala tanto sobre aquela época (ou ainda mais) que “Terra em Transe” ou “Deus e o Diabo na terra do sol”.

Se o cinema é tão múltiplo, talvez seja melhor procurar nas outras linguagens a chave para a compreensão dos gêneros. Poderíamos assim, por analogia, entender melhor as diferenças entre as várias formas de representar a vida. A literatura é uma forma de expressão muitíssimo mais sofisticada que o cinema, não só pelo seu acesso fácil ao inconsciente alheio, mas também porque começou quatro ou cinco mil anos antes. Se achamos que “Cidadão Kane” é um clássico por ter sido o seu “valor posto à prova do tempo”, o que dizer de Homero, Aristóteles, Montaigne, Shakespeare e Cervantes? Petrônio tem piadas que continuam boas depois de dois mil anos, isto é que é clássico! (Uma do “Satiricon”, do banquete de Trimalcião: “Ele é tão rico que, se quiser, toma leite de galinha!”).

Eu, é claro, não fui o primeiro a buscar na literatura a chave para a compreensão dos procedimentos narrativos do cinema. Eisenstein foi fundo sobre o tema no seu texto “Dickens, Griffith e nós”:

“Deixemos Dickens e toda a plêiade de antepassados, que remontam inclusive aos gregos e a Shakespeare, lhes lembrarem mais uma vez que ambos, Griffith e nosso cinema, provam que nossas origens não são apenas as de Edison e seus companheiros inventores, mas se baseiam num enorme passado cultural; cada parte deste passado, em seu momento da história mundial, impulsionou a grande arte da cinematografia. Que este passado seja uma reprovação às pessoas inconscientes que trataram com arrogância a literatura, que contribuiu tanto para esta arte aparentemente sem precedentes e é, em primeiro lugar, e no mais importante: a arte de observar - não apenas ver, mas observar.” Eisenstein, em “A Forma do Filme”.

Claro, é disso que se trata: a arte de observar.

Usando como guia o livro “Mimesis”, de Erich Auerbach, resolvi fazer (para mim mesmo, publico quando tiver sessenta anos e estiver exilado na Turquia) um paralelo entre os modos de representação da realidade na literatura e no cinema. Sendo o cinema (como eu já disse) uma forma mutante, a cronologia da lista vai para o espaço. Alguns tópicos do meu “estudo”, por enquanto tenho pouco mais que os títulos dos capítulos:

Homero e o flash-back: cronologia é vício.
(Alain Resnais, Godard, Orson Welles, Woody Allen, Tarantino)

Petrônio e a prosódia: a subjetividade do discurso.
(Herzog, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro)

Dante e a vertigem dos acontecimentos: “Então, mudando para algo totalmente diferente…”
(Monty Python, Tomás Gutiérrez Alea, Scorsese)

Santo Agostinho e a transformação do personagem: cai a ficha.
(Frank Capra)

Boccaccio e as vídeo-locadoras: a fábula como entretenimento.
(os bons filmes “B” americanos)

Rabelais e os delírios visuais: arte é tudo que a natureza não é.
(Fellini, Buñuel)

Montaigne e o documentário: a condição humana.
(Eduardo Coutinho)

Shakespeare, Giotto e a corporalidade: o renascimento da tragédia e a invenção do homem.
(Bergman, Kurosawa, Woody Allen)

Cervantes e o nascimento do romance: a invenção do homem II.
(Ettore Scola)

Moliére e a comédia: a história como máquina.
(Billy Wilder)

Voltaire e a decupagem: a técnica do holofote e o humor como forma avançada da filosofia.
(Alain Resnais)

Saint-Simon e o acaso: a multidão de personagens.
(Altman)

Goethe e a telenovela: o prazer do sofrimento alheio.
(Janete Clair)

Stendhal, Balzac e a narração off: o autor como personagem e a invenção do realismo.
(John Huston)

Flaubert e a imagem dramática: o roteiro como literatura.
(As Horas - Stephen Daldry / Michael Cunningham, Tarkovsky)

Brecht e o cinema-teatro: realismo tem hora.
(Glauber)

Como o assunto aqui é “O Sujeito Extraordinário”, me concentro nos séculos 15 e 16, período em que a decadência da idéia de “destino” e a queda do ibope de Deus fizeram ressurgir a tragédia (2) e o ser humano foi reinventado pela ficção e pelos ensaios (documentários?) nas palavras de Montaigne, Shakespeare e Cervantes.

“Os outros formam o homem, eu relato a seu respeito e represento um em particular, bastante mal formado: eu mesmo. (…) Não posso fixar o meu objeto; ele vai, confuso e titubeante, com uma ebriedade natural. Pego-o em qualquer lugar, como está, no instante em que com ele me divirto; não descrevo o ser, descrevo a passagem. Ninguém tratou de um assunto do qual entendesse ou o qual conhecesse melhor do que faço. (…) Descrevo uma vida baixa e sem brilho: dá na mesma; é possível achar toda a filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica: cada homem leva em si a forma inteira da condição humana.” Montaigne, Ensaios, livro II, capítulo 2.

“As pessoas finas observam mais curiosamente e mais coisas, porém as glosam; e, para que façam valer sua interpretação e persuadam, não podem deixar de alterar um pouco a História; jamais mostram as coisas puras, as inclinam e as mascaram conforme as viram. (…) Gostaria que cada um escrevesse o que sabe e na medida em que o sabe.” Montaigne, Ensaios, Livro I, capítulo 31.

“Ser ou não ser - eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias - e, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; ó isso. E com o sono - dizem - extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer - dormir - dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa.” Shakespeare, Hamlet, ato III, cena 1.

“Um dos dilemas inerentes à interpretação de Hamlet é que jamais sabemos a certo quando ele está representando o papel de Hamlet, a despeito da “atitude extravagante”. A mímese, isto é, a imitação que o ator faz de um ser humano, é algo que preocupa Hamlet, mas não é problema que aflija Falstaff. (…) Hamlet poderia ter escrito Hamlet, ao passo que Falstaff acharia redundante escrever Falstaff. (…) Falstaff é feliz consigo mesmo e com a realidade; Hamlet é infeliz nos dois aspectos. Hamlet é o Falstaff de si mesmo. Não acredita em nada, nem em si mesmo, nem em Deus, nem na linguagem. Os dois ocupam uma posição central na invenção do humano por Shakespeare. (…) Kenneth Burke ensinou-me a aplicar a Hamlet a grande máxima de Nietsche: “O que expressamos com palavras já está morto em nossos corações. Sempre haverá algo de desprezível no ato da fala”. Observação alguma poderia se aplicar tanto a Hamlet e tão pouco a Falstaff.” Harold Bloom, “Shakespeare, a invenção do humano”.

“E a primeira coisa que fez foi limpar uma armadura que tinha sido dos seus bisavós, e que, desgastada de ferrugem, jazia para um canto esquecida há séculos. Limpou-a e conservou-a o melhor que pôde; porém viu que tinha uma grande falta, que era não ter celada de encaixe (a); senão só morrião simples (b); a isto porém remediou a sua habilidade; arranjou com papelões uma espécie de meia celada, que encaixava com o morrião, representando celada inteira. Verdade é que, para experimentar se lhe saía forte e poderia com uma cutilada, sacou a espada e lhe atirou duas; e com a primeira logo se desfez o que lhe tinha levado uma semana para a arranjar; não deixou de parecer-lhe mal a facilidade com que dera cabo dela, e, para forrar-se a outra que tal, tornou a corrigi-la; por modo que se deu por satisfeito com sua fortaleza, sem aventurar-se em mais experiências”. Miguel de Cervantes, Dom Quixote, livro I, capítulo 1.

(a) parte da armadura que protege a cabeça e o rosto.

(b) capacete sem viseira.

“Cervantes sustentou que o seu Dom Quixote fora feito para acabar com os romances de cavalaria. Mas o que ele fez foi criar um protótipo do romance, o gênero mais popular da literatura moderna. (…) Por sorte ou por malícia Cervantes criou uma nova forma, que outros autores puderam desenvolver e aperfeiçoar - uma maquete para versões da comédia humana. Ele criava não apenas um romance, criava o romance ocidental, que lhe deu um lugar entre os inventores do nosso mundo moderno, lugar comparável ao de Copérnico no mundo dos descobridores. Mas enquanto Copérnico mudou o nosso olhar da terra para o sol, Cervantes mudou-o do alto espaço para o mundo interior do homem. E da mesma forma que o físico Dalton iria revelar muitas mais espécies de matéria do que se imaginava, Cervantes mostrou aos literatos variedades desconhecidas e insuspeitadas de pessoas que vivem dentro do próprio homem. Enquanto os agentes estatísticos descobriam novas uniformidades entre grupos de pessoas, Cervantes mostrava primeiro as variedades do indivíduo, inovando no esforço da literatura moderna de incluir toda a experiência no romance. O criador estava entrando em território novo. O romance se estendia para fora ao mesmo tempo em que olhava para dentro. Ele ia democratizar ao mesmo tempo o público e o assunto da arte literária. “Recriando a vida com a vida” o romance vai descobrir o homem moderno para o homem moderno. O que a estatística e a ciência social iam conquistar para a experiência pública, a arte do romance fez para a experiência privada”.\

(…) “Infligindo a seu herói de classe média a ilusão de que as convenções do romance conhecido eram reais, ele abriu a janela para uma vida diária não encontrada na epopéia ou no romance. Agora o leitor participava do embate de outra pessoa entre seus sentimentos íntimos e a vida lá fora. Assim o romancista ficava sendo o guia do leitor para a entrada em outra pessoa.” Daniel Boorstin, “Os Criadores”.

No livro 10 da República de Platão, Sócrates critica os poetas e o caráter “imitativo” da poesia. A analogia utilizada é a de uma cama e sua relação com Deus, o carpinteiro e o pintor (ou poeta). Existem, segundo Platão, três tipos de cama: o primeiro é a cama “em si”, a cama como idéia, uma idéia criada por Deus; depois, a cama que resulta desta idéia, feita pelo carpinteiro; por último, a pintura de uma cama, feita pelo pintor. Deus seria o autor da cama, o carpinteiro seu artífice e o pintor faz apenas uma imitação (mimesis), “algo afastado da natureza por três graus”.

Não tenho nada a acrescentar na defesa que Aristóteles, em oposição a Sócrates e Platão, fez da poesia e da arte. Retomo a analogia porque acho que o cinema, na lógica platônica, estaria afastado da realidade em dois graus e meio. Um filme sobre uma vida não é uma vida, assim como a pintura de uma cama não é uma cama e a pintura de um cachimbo não é um cachimbo. Mas um quadro que representa uma cama (lembrando um exemplo bastante conhecido, como nas pinturas que Van Gogh fez de seu quarto) sempre contém uma dúvida: ele pintou uma cama que via ou uma cama que imaginava? O quadro é a imitação de uma idéia ou de uma cama real? Por mais realista que seja a pintura, a intermediação da subjetividade do artista está sempre presente.

Isto não acontece no cinema, ao contrário. Na fotografia, e ainda mais no cinema, a imagem de uma cama sempre leva a crer a existência de uma cama real e possível de ser fotografada. A fotografia (e mais ainda o cinema) nos força a uma ilusão: eu estou vendo uma cama, logo existe uma cama, a imitação é camuflada pelo caráter mecânico e aparentemente não subjetivo da linguagem fotográfica.

Todos nós sabemos que esta “não-subjetividade” é falsa. E tanto mais elaborada se torna a linguagem cinematográfica mais aumenta a subjetividade. Tomemos por exemplo as primeiras imagens do cinema, a chegada do trem na estação e a saída da fábrica registradas por Lumière. Suponho que aquele trem existiu e chegou mesmo numa estação, a subjetividade ali se limita a posição da câmera e a escolha do momento em que o filme começou e terminou de rodar. Já na saída da fábrica me ocorre uma dúvida: Lumière esperou que o apito da fábrica tocasse e acionou sua câmera (o que poderia significar um desperdício do raro negativo) ou acionou sua câmera e gritou “ação” aos operários? Quanto de “encenação” há naquela imagem? A dúvida pouco importa: Lumière logo descobriu que poderia “encenar” a realidade, com atores e ações previamente combinadas. A ficção e o documentário, no cinema, são gêmeos bivitelinos.

A linguagem cinematográfica sempre contém uma enorme dose de encenação, seja em “Nanook do Norte”, do Flaherty (que teve os negativos perdidos e foi refeito), em “Aruanda”, de Linduarte Noronha (que tem um roteiro e uma decupagem muito precisa) (3), em “Ilha das Flores” (onde o dono dos porcos é o motorista da nossa kombi), em “Tire Dié”, do Fernando Birri (onde as crianças dão uma aula de interpretação), em “Esta não é a sua vida” (onde Noeli aprendeu rapidamente a selecionar os trechos mais interessantes de sua história). A dose de “representação” em um documentário é sempre uma questão ética a ser enfrentada pelo cineasta. Para mim o documentário é honesto e ganha status de arte quando explicita os mecanismos de sua realização. Por exemplo, quando Coutinho, em “Santo Forte”, filma o momento em que uma entrevistada recebe o cachê e assina a autorização por sua participação no filme. Mas a questão permanece: que direito tenho eu de editar fragmentos de uma vida real para reordená-la na forma de uma história exemplar?

“(…) Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, na mágoa quotidiana das matemáticas de ser, eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim! (…) Por que é que ensinaste a clareza da vista se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Por que é que me chamaste para o alto dos montes se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?”
Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio, poesias de Álvaro de Campos.

A dramaturgia cinematográfica tem características próprias, inescapáveis, com conseqüências distintas na ficção e no documentário. Algumas delas:

Simplificação: Um personagem é sempre uma simplificação, uma concentração de ações e palavras que o define no interesse da narrativa. Na ficção, esta simplificação é feita em parceria e cumplicidade com o ator. No documentário, quase inevitavelmente, a simplificação é feita sem que o “ator” tenha dela plena consciência.

“Vinde a mim as criancinhas do nordeste que eu ensino a fome a receber cachê.”
Nei Lisboa, em “Carecas da Jamaica”.

Mimesis: Um documentário representa uma vida, como uma pintura representa uma cadeira, e a cadeira existe, tem vida real. A ficção é sempre intermediada pela consciência de uma mimesis, pelo acordo tácito que envolve qualquer representação, qualquer jogo dramático. O documentário, em oposto, sugere o registro da vida, como se ela acontecesse independentemente da presença da câmera, o que é falso. A presença da câmera sempre transforma a realidade. E esta transformação segue para além do filme. Registrar uma vida real é uma grande responsabilidade, compreende uma enorme quantidade de dilemas morais, éticos, em cada etapa da filmagem: no enquadramento, na iluminação, na edição de som e, principalmente, na montagem.

“O que expressamos com palavras já está morto em nossos corações.” A literatura, ao mergulhar no mar de sentimentos inconfessáveis, é capaz de representar a vida de forma muito mais complexa que o cinema. E, por mais que os melhores documentários (como “Cabra marcado para morrer”, por exemplo) revelem, por habilidades da imagem ou da montagem, sentimentos inconfessos de seus personagens, muito mais pode o jogo dramático na ficção. No documentário a manipulação das emoções, a radicalização ao expor sentimentos, esbarra nos limites da ética, no compromisso moral que o autor tem com seus personagens, pessoas reais. Lady Macbeth, em frente a uma câmera, jamais censuraria seu marido por ele estar “demais impregnado do leite da bondade humana”. Provavelmente diria estar compungida com a morte do rei e mandaria condolências aos seus familiares.

Pensemos, apenas para citar um exemplo fresco, na representação da relação de Laura Brown (personagem de Julianne Moore) com seu marido Dan (John C. Reilly) em “As Horas” (de Stephen Daldry). Como um documentário poderia registrar os sentimentos de um personagem que não é capaz de confessá-los nem a si mesmo? Como documentar, no cinema, as dúvidas privadas e silenciosas diante da idéia do suicídio?

Mais uma vez, a saída é a literatura e a ficção. A cena em que Laura (Julianne Moore) está à mesa de jantar com seu marido e filho, me remete imediatamente a Emma Bovary:

“Mas era sobretudo às horas da refeição que ela não agüentava mais, nesta pequena sala do andar térreo, com a estufa que fumegava, a porta que rangia, os muros que gotejavam, as lajes úmidas; toda a amargura da existência parecia-lhe servida no seu prato e, como a fumaça do cozido, subiam do fundo de sua alma como em outras baforadas de enjôo. Carlos era vagaroso ao comer; ela mordiscava algumas avelãs, ou então, apoiada no cotovelo, divertia-se a fazer riscos com a ponta da faca na toalha.”
Madame Bovary, Gustave Flaubert.

Que a ficção, que é sempre um documentário sobre sentimentos privados e inconfessáveis, explore radicalmente e sem censuras o coração humano. Que o documentário revele de forma transparente a sua dose de ficcionalidade. E que não esqueçamos as palavras de Elias Canneti: “Não acredite em alguém que sempre diz a verdade”.


Notas:

(1) Na verdade, o Mamet faz aqui uma pequena confusão entre “lente” e “janela”. O que define as proporções do quadro não é a lente e sim a janela da câmera. A imagem formada pela lente é circular e dentro deste círculo cabem quadriláteros de qualquer proporção. O formato mais comum da imagem cinematográfica, o formato da janela (e não da lente) do 35mm, é o 1,33:1. 1,66:1 é o padrão de “janela larga” européia, enquanto 1,85:1 é a janela larga norte-americana. 2,15:1 é o formato final do Cinemamascope e 1,77:1 é o da HDTV. O Giba Assis Brasil, que me alertou para o erro do Mamet, acha que o 1,66 não tem nada a ver com o 1,618 e sustenta que a maioria dos formatos são apenas relações de números simples. 1,33 = 4/3. 1,66 = 5/3. 1,77=16/9. De qualquer forma, a imagem do cinema nunca foi quadrada ou redonda. Para informações mais detalhadas sobre o retângulo áureo ver TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte. Editora Uniprom, 1999. Ou, pela internet, A métrica da beleza, disponível em http://www.eps.ufsc.br/disciplinas/fialho/ergcog/seminarios01B.html

(2) Durante mil anos a tragédia de Cristo foi imbatível - “Mais sofreu Cristo!” - e ele se tornou o único personagem possível. É interessante perceber que Hamlet, a maior tragédia já escrita, retoma os temas da morte e do filho perdido em busca do pai. Bloom sustenta que as maiores reflexões já escritas sobre a morte e sobre a vida após a morte são Hamlet e o evangelho de São Marcos. Para uma análise da vida de Cristo como tragédia, ver MILES, Jack. Cristo, uma crise na vida de Deus. Companhia das Letras, 2001.

(3) “O documentário não se limita a mostrar flagrantes de uma vida atrasada, mas pretende apresentar o mecanismo dessa vida. Noronha ultrapassa poeticamente a exposição de um mecanismo econômico. Ele tem a intuição do deserto: a terra seca é a personagem principal da fita.” Jean Claude Bernardet, Brasil em tempo de cinema.


Bibliografia:

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura universal. Editora Perspectiva, 1992.

BLOOM, Harold. Shakespeare, a invenção do humano. Editora Objetiva, 2000.

BOORSTIN, Daniel J. Os Criadores. Civilização Brasileira, 1995.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Editora Cultrix / Pensamento, 1997.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Abril Cultural, 1978.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Jorge Zahar, 2002.

FADIMAN, J. e FRAGER, R. Teorias da Personalidade. Editora Harbra.

HONAM, Park. Shakespeare, uma vida. Companhia das letras, 2001.

JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus símbolos. Nova Fronteira, sem data.

MAMET, David. Três usos da faca: sobre a natureza e a finalidade do drama. Civilização Brasileira, 2001.

MILES, Jack. Cristo, uma crise na vida de Deus. Companhia das Letras, 2001.

PESSOA, Fernando. Obra Poética. Editora Nova Aguilar, 1997

PLATÃO, A República. Editora Hemus, 1970.

SHAKESPEARE, William. Teatro completo. Ediouro, 1992.

TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte. Editora Uniprom, 1999.

VOGLER, Chistopher. A jornada do escritor. Editora Ampersand, 1992.

(C) Jorge Furtado
março de 2003