RECEITA DE POLÍTICA CULTURAL

por Giba Assis Brasil
fevereiro de 2001.

O que é preciso para ter uma política cultural na área cinematográfica? Vinte anos de atuação me apontam cinco fatores fundamentais: (1) bons filmes; (2) uma entidade de classe organizada, representativa e respeitada; (3) vontade política de parte dos governos de plantão; (4) pessoas capazes colocadas em postos-chave de gestão; (5) mais bons filmes.

BONS FILMES

Ainda que seja o fator de mais difícil definição, é claro que não se consegue nada sem bons filmes. O que torna o círculo particularmente vicioso é que é cada vez mais difícil fazer qualquer tipo de filme (bom, então, nem se fala) sem a existência prévia de algum tipo de política cultural. Não foi por acaso que a minha geração começou pelo super-8, lá por 1980, e que a nova geração de cineastas gaúchos, de uns 5 anos pra cá, também veio reclamar os seus direitos a partir de filmes realizados na menor das bitolas. Da margem, do limite da falta de orçamento, da ausência mesmo de profissionalismo é que costuma surgir a novidade que alimenta e recicla a produção profissional, estabelecida e necessária, eventualmente a indústria.

ENTIDADES

Uma entidade de classe é um acordo coletivo, de origem quase sempre corporativa, e portanto pequena, parcial, localizada, mas ainda assim imensamente mais civilizada que o velho cada-um-por-si. Numa entidade organizada, o acordo é mais ou menos o seguinte: a cada dois anos, nós nos reunimos e elegemos uma diretoria, ou na verdade nos dividimos em dirigentes e dirigidos, e nos concedemos mutuamente obrigações e privilégios.

Claro que o mais importante são as obrigações dos dirigentes: reunir-se toda segunda-feira para dividir as tarefas da semana, e depois cumpri-las, reunir-se com os órgão públicos e empresas privadas que podem viabilizar os projetos da classe, falar em nome dela. Mas, ainda que gastem nisso boa parte de suas semanas, e sem receber salário nenhum, os dirigentes também têm alguns privilégios: estar próximo de onde as decisões são tomadas, poder influenciar diretamente sobre elas (ainda que defendendo opiniões da maioria, nem sempre as suas próprias), poder dar aos outros a sua versão sobre como as decisões foram tomadas. Muito mais agradáveis são os privilégios dos dirigidos: não precisar ir às reuniões ou cumprir as tarefas e, portanto, cuidar da vida, trabalhar, fazer filmes. Ainda que os dirigidos também tenham as suas obrigações: defender publicamente a atuação dos dirigentes (até prova em contrário) e, nas Assembléias Gerais, cobrar o que os dirigentes fizeram e principalmente o que eles não fizeram. (Um tipo de organização com ecos de trabalho voluntário em ONGs e de militância política estudantil, é verdade, mas alguém conhece alguma outra que funcione melhor, com o mesmo grau de democracia?)

A entidade precisa ser representativa, isto é, a maioria dos que fazem (ou querem fazer) cinema na região representada precisa estar de acordo com a sua atuação. Claro que sempre vai haver aqueles que consideram a entidade um bando de gente que só pensa em seus interesses pessoais, e que por isso nunca vão se dispor a participar de uma diretoria. Ou o contrário: não querem fazer parte e por isso desenvolvem desconfianças a respeito dos dirigentes. E o interessante é que, embora nem todos tenham (ou precisem ter) as qualidades de diplomacia necessárias para um cargo de presidente, as tarefas semanais de uma entidade são tão grandes e tão variadas que qualquer um com um mínimo de inteligência e capacidade de trabalho pode (e deve?) contribuir.

Desconfie, portanto, dos que nunca participam e vivem dizendo que as entidades só servem para viabilizar os filmes dos seus dirigentes. Noventa por cento dos dirigentes de entidades são suficientemente honestos e inteligentes para evitarem levar esse tipo de vantagem pessoal imediata, mas eles também sabem que prestar contas do que fazem é parte das obrigações do cargo. Portanto, desconfie ainda mais dos dirigentes que fazem questão de parecer indignados quando alguém sugere que eles podem estar levando vantagem: estes, em geral, estão entre os dez por cento.

Enfim, para que a entidade seja respeitada, nos órgãos e empresas onde são negociados os projetos da classe, ela precisa ter um tempo de atuação, que se mantenha coerente mesmo quando mudam os dirigentes. Ela precisa que mudem os dirigentes, para que todo mundo, dentro e fora da entidade, entenda que a entidade não são os dirigentes. Um bom estatuto de entidade deve prever a necessidade de renovação de quadros. Uma boa diretoria deve preparar novos quadros para substituí-la quando terminar o mandato. Uma boa entidade deve entender que os filmes a serem realizados precisam ter retorno de interesse público, deve pensar em termos de cinema e não apenas de filmes, e um dia, quem sabe, superar o corporativismo e passar a ter projetos abrangentes para a cultura do município, do estado e do país.

VONTADE POLÍTICA

“Este governo (ou aquele) não tem política cultural”. Cansei dessa frase. Não uso mais. Prefiro uma abordagem que, à falta de termo melhor, eu definiria como pós-estruturalista: a política cultural de um governo é o conjunto de ações culturais que ele realiza, ou o significado cultural deste conjunto de ações, não uma possível formulação teórica que estaria por trás de tudo. Um governo que não faz absolutamente nada em termos culturais tem sim uma política cultural - nula, mas tem. Um governo cujas ações culturais são desencontradas tem sim uma política cultural - incoerente, mas tem. Acho mais produtivo criticar uma política cultural (que eu posso identificar) a ficar eternamente pedindo que ela apareça.

Em abril de 1998, o estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, foi palco de um show do tenor Luciano Pavarotti, que foi saudado pelo jornal Zero Hora como “o maior evento cultural da história do estado”. Na mesma época, estava em cartaz no Rio Grande do Sul o filme “Anahy de las Misiones”, de Sérgio Silva, o primeiro longa gaúcho da década. Ambos, filme e show, foram pagos integralmente com dinheiro público, ou, usando o eufemismo tradicional, “recursos incentivados” - Pavarotti com a Lei de Incentivo à Cultura do estado (LIC), Anahy misturando LIC, Lei do Audiovisual e o velho Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, ainda do Ministério Houaiss. O custo total de Anahy foi bem menor - pouco mais da metade - que o de Pavarotti. Independente de qualquer comparação entre as qualidades do filme e do espetáculo, é fato que a realização de Anahy representou a criação de uma obra nova, enquanto o show de Pavarotti foi uma reapresentação, ainda que para um público novo. Anahy certamente abriu mais postos de trabalho na área cultural, e durante mais tempo. E, apesar de serem fatos culturais com perspectivas completamente diversas em termos de público - um filme “miúra” versus um típico “evento de massa” -, o fato é que Anahy teve quase o dobro do público total de Pavarotti. No entanto, a produção do filme levou quase 3 anos para captar os recursos necessários à sua realização, enquanto que o show foi aprovado para captação pela LIC menos de 15 dias antes de sua realização.

Por que as leis de incentivo privilegiam a reapresentação de um evento que acontece em um único dia, gera menos empregos, custa mais e tem menos público, enquanto parecem mais dificultar do que viabilizar a realização de uma obra original, que movimenta mais a economia cultural com um investimento substancialmente menor e que afinal atinge diretamente mais gente? Só há uma resposta possível: as leis de incentivo fazem parte de uma polítca cultural cuja vontade não passa por obras originais, nem por custos baixos, nem por empregos na área cultural, nem mesmo por grande público direto; seu interesse concentra-se na única coisa em que “Pavarotti” foi e sempre será maior do que “Anahy”, ou seja, no seu público indireto, naquelas pessoas que não viram o filme nem foram ao show mas que ficaram sabendo da sua existência através da mídia, que generosamente o considerou “o maior evento cultural da história”. Dito de outra forma: para os patrocinadores, não faz diferença qual foi o bem cultural gerado - nem em termos qualitativos nem quantitativos; só o que interessa é que a sua marca esteja presente na mídia - de preferência, não restrita às páginas dos suplementos culturais.

Seria um raciocínio apenas perverso, se ficasse apenas no âmbito dos patrocinadores, se não fizesse parte de um sistema, ou se não fôssemos nós a pagar a conta. No caso, trata-se, sem dúvida nenhuma, de uma política cultural.

PESSOAS-CHAVE

Não adianta nada ter um bom projeto, defendido por toda a classe, negociado corretamente por bons dirigentes com governantes de boa vontade, se depois, no órgão competente, não houver um gestor público com capacidade para levar a idéia adiante. Eventualmente acontece mesmo o contrário: um bom Secretário de Cultura, um bom Diretor de Instituto ou Coordenador de Área valem mais que a tal vontade política do governo.

Todos os bons projetos que se conseguiu realizar no Rio Grande do Sul - Curta nas Telas, Fumproarte, Prêmio Iecine, Prêmio RGE-Governo do estado, Curtas na RBS, etc. - dependeram e continuam dependendo de gestores competentes dentro dos órgãos públicos e privados que os viabilizaram. E não é coincidência que parte deles tenham saído justamente dos quadros da entidade. Um bom gestor é mesmo aquele que cria e viabiliza projetos que as entidades não são capazes de criar - por corporativismo, por limitação de visão ou mesmo porque o trabalho voluntário não pode e não deve ocupar mais do que algumas horas da semana.

Mas, quando eu falo em pessoas-chave, também estou me referindo à representação da entidade em conselhos, órgãos colegiados, federações de entidades e principalmente em comissões de seleção de concursos de projetos.

Parafraseando a clássica e circular definição de democracia, os tais concursos de projetos são a pior forma de distribuir recursos públicos para apoiar a produção de filmes - com exceção de todas as outras. Claro que eu estou falando de concursos públicos, com prazos razoáveis de inscrição, regras claras, previsão de retorno de interesse público e comissões formadas por pessoas representativas, com capacidade de julgamento e que não se eternizem na função.

MAIS BONS FILMES

Um ciclo de bons filmes pode gerar uma política cultural, mecanismos de apoio à produção, investimentos em infra-estrutura, etc. Mas, se tudo isso não tiver como conseqüência um novo ciclo de bons filmes, as instituições não se solidificam. Toda política cultural, claro, deve ser feita em função dos talentos existentes, mas sempre prevendo a renovação. Não sei se as próximas gerações do cinema brasileiro surgirão do Super-8. O mais provável é que venham do vídeo digital ou da Internet, ou de ambos. Tanto faz. Durante muito tempo eu acreditei que a qualidade dos filmes vinha como conseqüência da quantidade. Hoje eu acho que a quantidade não é suficiente: bons filmes surgem como conseqüência da diversidade.

(c) Giba Assis Brasil
(texto publicado na Revista Sinopse - intervenção nº 2, São Paulo, fevereiro de 2001)